Crónica no Pataias à Letra, edição nº23, dezembro 2022
A democracia
A propósito da democracia, um amigo meu costuma dizer:
«Adoro a democracia. Não há ninguém mais democrata que eu, desde que concordem
comigo».
A recente iniciativa de tentativa de desagregação da União
de Freguesias de Pataias e Martingança foi, em praticamente todo o processo,
uma excelente lição sobre as virtudes (e defeitos) da democracia.
A iniciativa, alegadamente, partiu de um grupo de cidadãos
da Martingança que recolheram mais de cinco centenas de assinaturas para que o
assunto fosse discutido em Assembleia de Freguesia. Esse grupo de cidadãos
construiu uma proposta e conseguiu, junto dos elementos da Assembleia de
Freguesia, a marcação de uma sessão extraordinária para que o assunto fosse
discutido. Um exemplo do funcionamento da democracia e das suas instituições.
Na discussão do assunto na assembleia do dia 30 de novembro,
os cidadãos proponentes tiveram oportunidade de explanar os seus motivos para a
desagregação da freguesia. Um exemplo do funcionamento da democracia e das suas
instituições.
Dos treze elementos eleitos, apenas quatro usaram da palavra
para se pronunciarem sobre a desagregação. Uns, a coberto de declarações de
voto partidárias; outros, corajosamente e dando publicamente “a cara e o corpo
às balas”, em nome individual. Uns a favor, outros contra. Um exemplo do
funcionamento da democracia e das suas instituições.
Na assembleia, cada um esgrimiu os argumentos que entendeu
como válidos. Curiosas foram as reações do público, que não se coibiu de cortar
a palavra e de pronunciar como falsas as palavras que não lhes agradavam,
protestando e interrompendo a argumentação dos oradores. E calando-se quando
algumas “incorreções” que lhes eram favoráveis eram ditas. Alguns destes
elementos exibem com orgulho a larga experiência do uso de palavra em
assembleias, onde sempre expuseram livremente as suas ideias. Um exemplo de
como olham o funcionamento da democracia e as suas instituições.
Quanto ao público presente na assembleia, das cerca de cinco
centenas de assinaturas num processo tão determinante para a União de
Freguesias e em especial para a Martingança, pouco mais de três dezenas
estiveram presentes. Do povo da Martingança, registaram-se quase só as
presenças de antigos autarcas e figuras políticas associadas a partidos com representação
nas Assembleias de Freguesia e Municipal. Um exemplo de como os cidadãos se
interessam pelo funcionamento da democracia e as suas instituições.
Pré e pós assembleia, as histórias de bastidores de reuniões
públicas – e privadas –, reuniões políticas, desafetos políticos por lugares em
listas nas últimas autárquicas, declarações de voto partidárias. Um exemplo de
como se “organiza” a democracia e as suas instituições.
No final, uma votação de oito votos contra a desagregação e
cinco a favor, pelos legítimos representantes eleitos pela população. A União
de Freguesias de Pataias e Martingança mantém-se. O pleno funcionamento da
democracia e das suas instituições.
Há, contudo, um erro de forma em todo este processo.
Narcisicamente, algumas pessoas sempre olharam para o fim da freguesia de
Martingança. Esqueceram-se que a freguesia de Pataias também se extinguiu. E no
âmbito da democracia e nas competências das suas instituições, poderiam ter
perguntado o que a antiga freguesia de Pataias pensa sobre o assunto. De forma
democrática.