A notícia na edição on-line do
jornal Público
Governo quer acabar com
licenciamentos prévios de construções
Medida integra proposta de lei de
bases do ordenamento e aplica-se apenas quando tudo o que deve ser cumprido
esteja previsto em planos de urbanização ou de pormenor.
Construir, reconstruir, recuperar ou
modificar uma casa ou edifício poderá estar isento de licenciamento no futuro,
segundo uma proposta de lei do Governo.
O fim da figura do terreno
“urbanizável” – restando apenas os "rústicos" e os
"urbanos" –, a venda e o arrendamento forçados de propriedades e a
flexibilização dos planos directores municipais são outras novidades da
proposta da Lei de Bases da Política dos Solos, de Ordenamento do Território e
de Urbanismo, aprovada na semana passada em Conselho de Ministros.
O fim dos licenciamentos não será
generalizado. Valerá apenas para as situações em que todas as normas de
construção e de urbanização são já conhecidas, como o número de pisos, a
volumetria ou os distanciamentos entre construções. Ou seja, se todos os
detalhes estiverem já definidos num plano de urbanização ou num plano de
pormenor, o construtor terá apenas de informar as autarquias do projecto que
irá concretizar, sem ter de esperar por uma autorização.
A fiscalização é feita durante a
obra e no seu final, acabando-se com a aprovação prévia hoje em vigor.
“Deixando de se colocar tantos recursos na fase do licenciamento, pode-se
colocá-los na fiscalização”, disse o ministro do Ambiente, Ordenamento do
Território e Energia, Jorge Moreira da Silva, numa conferência de imprensa esta
quarta-feira, onde as linhas gerais da proposta de lei foram apresentadas.
Na prática, o fim das autorizações
prévias só se aplicará a novos planos de pormenor e de urbanização, pois os
actuais normalmente não chegam a tal nível de detalhe.
A nova lei, se aprovada, colocará um
peso maior nos planos directores municipais (PDM). Tudo o que está definido
noutros planos de ordenamento – das áreas protegidas, da orla costeira ou
outros – a respeito do que os particulares podem fazer nas suas propriedades
estará concentrado nos PDM. “Os cidadãos deverão conhecer apenas um plano de
ordenamento, e este plano é o PDM”, disse Moreira da Silva.
As câmaras municipais terão três
anos para adaptar os seus planos. Se não o fizerem, poderão ficar impedidas de
aceder a subsídios e financiamentos públicos. “Estou confiante na
dispensabilidade destas penalizações”, disse, porém, o ministro do Ambiente.
Outras novidades da proposta de lei:
Fim dos solos urbanizáveis
Passa a haver apenas solos rústicos
(rurais) e urbanos. Os solos “urbanizáveis”, programados exageradamente nos PDM
para a expansão urbana, desaparecem tendencialmente. Se para algumas
propriedades houver alvarás válidos, os solos serão urbanos. Se os alvarás
estiverem caducados, haverá um período de três anos para os renovar. Caso
contrário, passam a rústicos.
PDM mais flexíveis
Os PDM poderão ser revistos e
alterados por planos de pormenor e planos de urbanização. Neste processo, pode
haver transformação de solos rústicos em urbanos. “Não é aceitável que um PDM
demore dez anos a ser revisto”, justificou o ministro Moreira da Silva.
Venda e arrendamento forçados
Esta figura já está prevista em
programas de reabilitação urbana, quando os proprietários não cumprem o que
está previsto. Agora será mais alargada, como uma solução de fim de linha,
quando responsabilidades legais não sejam cumpridas. Está ainda a ser discutido
se se aplica também a solos rústicos – por exemplo, propriedades agrícolas onde
nada esteja a ser cultivado
Viabilidade económica
O uso do solo só pode ser alterado
se houver a demonstração da viabilidade económica e financeira da função que
vai cumprir, incluindo os custos associados com infra-estruturas.
Distribuição de encargos e
benefícios
A proposta de lei prevê uma
repartição tanto dos custos de salvaguarda de valores naturais ou culturais,
como das mais-valias obtidas devido a decisões administrativas. O ministro do
Ambiente não forneceu detalhes sobre como isto será feito, mas uma das
possibilidades é através de mecanismos fiscais. "O risco de se criarem
mais-valias na ponta da caneta será largamente mitigado"
A proposta de lei será agora
encaminhada para a Assembleia da República, para discussão e votação. Se for
aprovada, sairá em conjunto com quatro diplomas complementares, que irão rever
os regimes jurídicos dos instrumentos de gestão territorial e da urbanização e
edificação, o modelo de cadastro e a regularização das actividades económicas.
Comentário
Confesso que esta é uma das leis que
me causa uma profunda reflexão.
Por um lado, os princípios e as
ideias subjacentes à Lei, há que reconhecer, são exemplares. Se existem planos
de pormenor e de urbanização já aprovados, efetivamente não faz sentido exigir
aos promotores a apresentação de projetos que “toda a gente” sabe o que devem
conter. A edificação num lote tem as suas regras definidas, cabe à autarquia
fazer cumprir as mesmas durante o processo de construção. E apenas licenciar o
edifício se as mesmas foram respeitadas.
Há ainda o princípio estabelecido
pela Lei de Bases do Planeamento e Ordenamento do Território, da
obrigatoriedade e subsidiariedade a que os diversos planos se encontram
obrigados, traduzidos, na prática, em que os Planos Diretores Municipais (PDM’s)
devem refletir todas as medidas defendidas pelos Planos hierarquicamente
superiores. Por exemplo, no PDM de Alcobaça devem estar inscritas as regras
definidas pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Alcobaça-Mafra ou
pelo Plano Regional de Ordenamento do Território de Lisboa e Vale do Tejo (PROTLVT) (aliás, esse é um dos motivos que tem ajudado a arrastar a revisão do PDM de
Alcobaça – mas não só). Essa correspondência entre planos impede, por exemplo,
que o PDM deixe construir sobre uma zona de arribas que o POOC proíbe,
considerando-as zonas de elevado risco.
Há ainda a questão dos terrenos
urbanizáveis. De acordo com os perímetros urbanos definidos para cada uma das
povoações portuguesas, e dos correspondentes “terrenos urbanizáveis”, as áreas
urbanas e urbanizáveis definidas em Portugal têm capacidade para alojar mais de 30 milhões de
habitantes. Sim, 30 milhões: 3 vezes a atual população. Depreende-se de forma
imediata que a definição destas áreas urbanizáveis se encontram claramente
sobredimensionadas. A juntar a este facto, a esmagadora maioria dos núcleos
urbanos (de grande e até de pequena dimensão) assistem a um despovoamento das
suas áreas centrais, transformando-os em enormes vazios populacionais, cheios
de casas abandonadas e degradadas. Em contrapartida, as periferias destes
lugares são edificadas, ocupando muitas vezes solos de elevada aptidão agrícola
ou de uso florestal e obrigando à expansão desmesurada de redes viárias, de
saneamento e água e de energia e comunicações que têm elevados custos de
instalação e de manutenção, que todos nós acabaremos por pagar. Para não falar no consequente aumento do custo energético associado aos transportes e a deslocações cada vez maiores. A regulamentação
e redefinição dos terrenos “rústicos” e “urbanos” encontra nesta proposta um
critério simples, lógico, compreensível, eficaz e sustentável.
Há ainda as questões das mais-valias
criadas “por despacho” e “a pedido”, que muitas vezes são parangonas dos
jornais, sem que os ilícitos criminais consigam ser determinados de forma
eficaz ou em tempo útil.
É também por estas questões que aqui
referi, pelos princípios e ideais enunciados nesta futura lei, que me
entusiasmo.
Mas…
Mas depois temos a nossa realidade.
Tomando o exemplo do concelho de
Alcobaça, que tem em vigor 16 instrumentos de gestão do território, dos quais 6
são planos de urbanização ou de pormenor.
O PDM de Alcobaça, em vigor desde 25
de outubro de 1997 (16 anos), previa a execução de quase 20 planos de
urbanização e de pormenor. Nenhum deles foi concretizado. Ou seja, na prática, toda
a gestão urbanística do território tem sido feita à escala de um mapa à escala
1/25000, em que uma fina linha de 1 milímetro tem o valor legal de 25 metros… E
os mais atentos sabem o que isso tem significado, por exemplo, na delimitação
da área urbana do lugar da Pedra do Ouro.
Como se isso não bastasse, os
atropelos às regras definidas em regulamento do PDM saltam à vista em quase
todas os lugares do concelho, dos mais remotos, aos mais mediáticos e mais
desejados no litoral. Em consequência, cada indivíduo tem construído (quase) o que
quer, (quase) como quer e (quase) onde quer. E como se isso não fosse
suficiente, os embargos decretados pela Câmara Municipal produzem um efeito…
nulo. Quem conhece um edifício levantado de forma ilegal, embargado pela Câmara
de Alcobaça e que tenha tido como consequência a sua demolição?
Ora, é neste quadro da mais ineficaz
ação camarária que vai surgir esta nova lei. Querem convencer-me de que se com os
atuais pedidos de autorização prévios, e sendo a construção em alguns dos locais do
concelho já aquilo que é, a Câmara vai conseguir pôr ordem num processo de “construir
primeiro e verificar as condições depois”? Eu cá não acredito.
É por isso que esta nova proposta de
lei me deixa muito renitente. É sem dúvida um documento legislativo muito avançado,
progressista e inovador, num país de pessoas intelectualmente pouco esclarecidas,
onde o prestígio maior é dado a quem “contorna” a lei sem que sofra consequências por
isso. Até existir uma alteração profunda de mentalidades e da forma de agir por
quem detém os poderes autárquicos (e não só), esta lei está condenada a duas
situações: ou a descoberta de um novo labirinto burocrático que vai impedir de construir
seja o que for, ou um verdeiro “regabofe” , em que cada um constrói o que quer,
como quer, onde quer. E todos nós conhecemos quem já faça isso, agora.
Sendo para todos, será isso a
democracia?
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