Para sugestões, comentários, críticas e afins: sapinhogelasio@gmail.com

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O Círio de Nsa. Sra. Da Vitória, pelos nazarenos

Da revista “Nazaré Informa”, Revista de Informação Municipal, nº2, Julho de 2005, o artigo (e fotografias) pela historiadora Mónica Maurício.

Círio de N. Sra. da Vitória
Cinco séculos de culto


É, sem dúvida, uma das festas mais acarinhadas pela população da Nazaré, a que a vertente de espectáculo e de animação não é alheia.
O Círio de Nossa Senhora da Vitória permanece, ano após ano, século após século, como manifestação de fé e devoção, mas também como uma das melhores demonstrações da fusão entre o sagrado e o profano.
Mas qual é a origem deste culto, com mais de 500 anos de existência?
Porque permanece ele tão popular hoje entre as gentes da Nazaré?

   
A presença humana no local onde se fundou a vila de Paredes remonta, segundo vestígios arqueológicos, à Pré-História, mas terá sido particularmente evidente na época da ocupação romana.

Este local encontrava-se edificado no cimo de uma encosta virada para o mar, sobressaindo o seu porto aberto na escarpa, defendido por um esporão natural da rocha contra incursões oriundas do mar.

A povoação de Paredes recebeu carta de foral em 17 de Dezembro de 1282, no reinado de D. Dinis. Este monarca exerceria uma política de protecção a esta vila, conferindo-lhe novos privilégios, em carta de 20 de Setembro de 1286, o que viria a contribuir para a estabilidade económico-social da vila e para o seu desenvolvimento demográfico. Em 17 de Maio de 1368, a vila foi doada ao Mosteiro de Alcobaça, a mando do monarca D. Fernando, com o propósito de as suas rendas recaírem para a salvação da alma de D. Pedro, seu pai, que jaz nesse mosteiro.

O crescimento dessa vila teria termo por volta do reinado de D. Manuel, passando a verificar-se um notório declínio. Desta forma, enquanto que em 1527 existiam 27 fogos, dez anos mais tarde esse número reduzia-se a catorze.

As conjecturas que explicam esse declínio são várias, sendo a mais plausível aquela que aponta para um assoreamento da vila, provocando-se o entulhamento das casas e do porto. José de Almeida Salazar afirma que esta vila possuiria um forte e 17 caravelas para a defesa do seu porto, que teria sido destruído pelas areias em 1600. Manuel Brito de Alão, Administrador da Casa Real da Nossa Senhora da Nazaré, assegura que naquele areal teria existido uma povoação de grandes dimensões, a que chamavam Paredes e que se teria despovoado devido a areias movediças e soltas que a cobriram, e também por ser alvo de piratas, o que teria motivado a sua mudança para a Pederneira. No local de Paredes ficaria apenas uma pequena ermida, no local onde teria existido uma Igreja paroquial dedicada a Nossa Senhora da Vitória.

São ainda defendidas as hipóteses de o porto de Paredes se ter desmoronado devido a uma violenta tempestade, ocorrida no segundo quartel do século XV, ou então de se ter degradado progressivamente.

Dá-se, então, uma migração da população de Paredes para a Pederneira, em busca de refúgio. Importa mencionar o facto de o mar ser bastante mais reentrante naquela época do que na actualidade, chegando a banhar a Pederneira, o que propiciou aos pescadores a manutenção da sua actividade – muitos continuaram a ir pescar em volta do local de Paredes, visto aquela zona ser muito abundante em pescado.

O culto a Nossa Senhora da Vitória
A diminuta população que se manteve na vila procurou apoio espiritual em Nossa Senhora da Vitória, que gradualmente foi ganhando importância. Pensa- se que este culto se venera desde os fins do século XIII, quando D. Dinis deu carta de foral a Paredes. No entanto, o círio votado àquela divindade terá tido início no momento da migração da população de Paredes para a Pederneira, que teria transportado consigo não só os privilégios e forais, mas também o culto de Nossa Senhora da Vitória, assegurando a sua manutenção.
Embora o círio tenha sofrido algumas interrupções na sua realização posterior, o culto da Virgem permaneceu constante, através da deslocação de devotos do Sítio e da Pederneira rumo a Paredes, como forma de agradecer a Nossa Senhora da Vitória as graças e as mercês que tinham alcançado mediante a sua intercessão. Esta divindade era igualmente vista como protectora dos navegantes, o que propiciou a deslocação de muitos fiéis antes da sua partida para a guerra do Ultramar ou para a pesca do bacalhau em terras distantes. Desta forma, nas paredes e no chão da ermida os devotos escreviam as suas preces e agradecimentos à Virgem [gravura 1], levando-lhe por vezes oferendas, fotografias ou pinturas, em sinal de agradecimento às promessas realizadas. No entanto, pode-se afirmar que o culto a Nossa Senhora da Vitória foi perdendo gradualmente o seu carácter católico e familiar, acentuando-se uma dimensão festiva com traços profanos.
A dimensão salvífica de Nossa Senhora da Vitória acentuou-se em 11 de Abril de 1925, quando supostamente terá ocorrido um milagre, no qual o barco Gazela de José Maria Tinoco e a sua tripulação foram salvos de naufragar na praia de Paredes. O milagre atribuído à Virgem imortalizou-se pelos versos populares: «A Senhora da Vitória, Mãe dos Homens do Mar, ela estendeu o seu manto, para o Gazela encalhar». A narrativa do milagre rapidamente se espalhou, intensificando deste modo o afluxo das gentes à ermida de Nossa Senhora da Vitória que, na década de 20 do séc. XX tinha conhecido um retrocesso.

Na primeira metade do século XX, o círio passou a realizar-se em 11 de Abril ou 1 de Maio, integrando assim o ciclo festivo da Primavera. Posteriormente, passou a ser efectuado na Quinta-Feira de Ascensão, dia em que não se trabalhava, podendo todos comparecer em peregrinação à vila de Paredes.

Dimensão ritual do Círio

O círio era formado junto ao Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, logo pela manhã, começando com as três tradicionais incursões em volta desse edifício. Na última volta entoavam-se as loas: «Do Sítio da Nazaré/ Vamos todos em romagem/ À Senhora da Vitória/ Prestar a nossa homenagem». Ao mesmo tempo, uma banda musical, vestida a rigor, acompanhava a romaria, seguida por três crianças vestidas com trajes de anjos que cantavam as loas e se deslocavam em burros enfeitados, levando uma bandeira com um largo galão dourado, que era segurada pelo mais alto, enquanto os outros dois sustinham na mão as guias. Logo atrás viria um casal de juízes, empunhando o juiz a bandeira e a juíza a guia. A todo este ritual assistia a multidão, que se espalhava nas escadas do Santuário e no largo.
A organização do círio ficaria a cargo do juiz, na medida em que possuía o respeito da maioria e escolhia o secretário e o tesoureiro para o auxiliarem na organização. No círio os romeiros iam vestidos com roupa domingueira, fazendo- se representar elementos de todos os estratos sociais.

Ao chegar a Paredes, efectuava-se uma pequena procissão com a imagem venerada, de seguida o círio executava voltas à ermida tal como as que tinha dado ao Santuário, recitando os anjos mais loas. Dentro da ermida realizava-se a missa, sermão e entrega das oferendas a Nossa Senhora da Vitória, sendo alinhadas as velas oferecidas enquanto ardiam no soalho da capela. A festa continuava, assumindo agora um carácter pagão, dando lugar às cantigas, ao baile e almoço no areal.

Antes do regresso, efectuavam-se as três últimas voltas à ermida enquanto os anjos cantavam mais loas «Adeus Virgem da Vitória/ Adeus Mãe de Portugal/ Pela lenda de Portugal, Pela senda triunfal/ Levai-nos ao reino da glória». Alguns romeiros pernoitavam junto à ermida, acolhendo-se debaixo dos alpendres de madeira.

No regresso ao Sítio, repetiam-se as voltas ao Santuário e a entoação de loas. O círio terminava com a entrega da bandeira aos juízes do ano seguinte e com o lançamento de foguetes.

Em meados do século XX, o círio propriamente dito conheceu um período de interregno, embora as romagens se tenham mantido. Em alguns anos, o círio chegou a formar-se na Praia, na praça Manuel de Arriaga. Na segunda metade do século XX, os romeiros acampavam na praia de Paredes, cerca de um mês antes do dia de realização do círio, instalando-se em tendas de tecido colorido, semelhantes às utilizadas na época balnear para alugar aos turistas.
Actualmente, o círio adquiriu de novo importância e, embora não reúna as multidões de outrora, continua a ser organizado anualmente com sucesso. O círio actual demonstra como a tradição de outros tempos ainda se mantém, pois aqueles que tiveram de abandonar as suas casas há cerca de cinco séculos continuam, através das gerações de agora, a realizar a romaria à Senhora que os protegeu. Transmite-se, deste modo, um legado de grande importância, não só a nível religioso, mas sobretudo cultural, visto que olhar para o círio de hoje, é como olhar para uma parte da história da Nazaré, é confrontarmo-nos com as nossas próprias origens, é compreender o presente, relembrando o passado.

Paredes e Famalicão

Durante o êxodo da vila de Paredes e a consequente transferência de pessoas para a Pederneira, terá ocorrido uma migração para Famalicão de Cima, pois na época Famalicão encontrava-se dividido em duas partes: a de Cima, pertencente à Pederneira, e a de Baixo a Alfeizerão. Com a instalação dos recém-chegados, ter-se-á originado o culto a Nossa Senhora da Vitória, sendo que, após um conflito, de que saiu vencedor Famalicão de Cima, deu-se a união entre o dois povoados. Em 1578, o orago de Famalicão era já Nossa Senhora da Vitória, mantendo-se até aos dias de hoje, com a dedicação da Igreja Matriz à Virgem.

1 comentário: