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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Um terço da orla costeira é propriedade privada

A notícia na edição do jornal "Expresso" no último sábado dia 9 de fevereiro de 2013.
O link aqui: http://www.asjp.pt/2013/02/09/um-terco-da-orla-costeira-e-propriedade-privada/


Domínio Público Marítimo tem 150 anos, mas grande parte continua particular
Um terço da orla costeira é propriedade privada

Lei da Água exige que se faça prova da propriedade até 2014. Surgem propostas para a prorrogação do prazo 


Quase 150 anos depois do decreto régio que determinou que os leitos e as margens costeiras são propriedade inalienável do Estado, ainda que possam ser usadas e exploradas por particulares, constata-se que cerca de um terço da orla costeira de Portugal continental é propriedade privada.
Um levantamento feito pelos serviços da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), com base na análise da publicação de 500 autos de delimitação do Domínio Público, estima que os terrenos ou prédios urbanos privados ocupam um total de 280 quilómetros ao longo da costa, de Viana do Castelo a Vila Real de Santo António. Algumas das propriedades têm poucas dezenas de metros. Outras estendem-se por quilómetros. E, nalguns casos, “o limite da propriedade já está debaixo de água, devido aos avanços do mar”, verificam os técnicos do ambiente.
Na análise feita até agora concluíram que a maioria dos proprietários conferidos já fez prova documental de que os terrenos são seus “por título legítimo”, com prova judicial que data de antes de 31 de dezembro de 1864 (no caso de leito ou margem do mar ou de rios) ou de 22 de março de 1868, no caso das arribas.
Entre eles encontra-se a Praia de Armação de Pêra (ver texto ao lado), que invoca um auto judicial de 1913 — um dos casos recentes mais polémicos pelo uso e ocupação de uma praia urbana, popular e de tradição piscatória. Mas quer nesta praia algarvia quer noutros casos espalhados pelo país a legislação garante que as parcelas privadas naquilo que devia ser domínio público do Estado “ficam sujeitas a uma servidão administrativa”. Ou seja, os proprietários têm limitações: não podem impedir o acesso público ao mar nem construir ou ocupar o que quiserem, sem cumprir as normas legislativas impostas no litoral, nomeadamente os Planos de Ordenamento da Orla Costeira.
Mas a procissão ainda vai no adro, já que existem outros 350 processos administrativos em curso na APA para verificar a delimitação do domínio público. E estes tanto abrangem áreas agrícolas como casas ou núcleos urbanos. Além disso, pelo menos 50 ações já deram entrada nos tribunais para reconhecimento judicial. E vão começar a surgir mais pretensos ou legítimos proprietários a desenterrar papéis do século XIX para provar a posse.
Com a entrada em vigor da Lei da Água, em 2005 — que alargou o conceito para Domínio Público Hídrico (DPH), incluindo todas as
águas navegáveis interiores — foi dado um prazo de sete anos para que os particulares comprovassem documentalmente junto dos tribunais que possuíam um título legítimo de propriedade.
Esse prazo termina a l de janeiro de 2014 — quando perfazem 150 anos sobre o decreto régio de D. Luís, que pretendeu salvaguardar a defesa da nação de eventuais invasões por mar, assim como as atividades pesqueiras, numa altura em que era escassa a ocupação urbana do litoral.
Se não o fizerem até lá, com prova judicial (aceite por um juiz), passarão a ter de pagar uma taxa ou uma renda sobre o uso, ocupação ou exploração dessas parcelas em DPH.
O advogado Pedro Ghidoni de Pina, que tem recebido vários casos de clientes a procurarem ajuda jurídica, defende a prorrogação do prazo legal. “A generalidade das pessoas não sabe desta lei. Ela não foi publicitada. E o prazo estabelecido é um ataque ao direito à propriedade privada, porque impede as pessoas de fazerem prova depois”, critica. “Temos clientes que só se apercebem de que a propriedade está em DPH quando têm de ir licenciar uma obra”.

População sem informação


Além disso, o sucesso na obtenção de prova “é muito baixo” admite o advogado, já que é preciso tempo e dinheiro para pesquisar em arquivos regionais, distritais e até na Torre do Tombo. Vários pedidos para que os prazos sejam adiados têm entretanto surgido, tendo em conta o trabalho de delimitação ainda por fazer e o desconhecimento das pessoas. E o Ministério da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território admite ter “em análise a possibilidade de se vir a alterar o prazo estabelecido”. Os deputados socialistas Miguel Freitas, Pedro Farmhouse e Jorge Fão apresentaram ontem no Parlamento uma proposta de prorrogação da lei por mais dois anos. Querem também que seja “integrada a simplificação de procedimentos”, já que a legislação não deixa de fora parcelas urbanas como Albufeira, Carvoeiro ou Portimão, onde “em prédios de cinco andares cada um tem de prestar a sua prova, explica Miguel Freitas.
E reforça: “É preciso alargar e concluir a delimitação de Domínio Público Hídrico em todo o país e publicitar o cadastro, para que as pessoas possam agir”.
 

Armação de Pêra

O atual Governo não quis exercer o direito de preferência nem expropriar a propriedade, porque “não existia dotação orçamental para o efeito” e “a prioridade no litoral são as situações de risco de pessoas e bens”. O Ministério da Agricultura, Mar e Ambiente garante “estarem assegurados os interesses públicos, o acesso à praia e a manutenção das atividades piscatórias”. E congratula-se que “o atual proprietário tenha demonstrado vontade de suportar todo o arranjo paisagístico e ambiental previsto no POOC e tencionar posteriormente doar o terreno ao Estado, pedindo em contrapartida a obtenção de uma concessão de praia”, cuja proposta ainda não foi formalizada.
O novo ‘dono da praia’, Manuel Cabral, confirma ser essa a sua intenção. O administrador do grupo alemão Vila Vita comprou a propriedade por €200 mil — em nome da empresa Praia da Cova — Realizações turísticas — porque quer “aquilo melhorado, já que os clientes do Arte Náutica (o outro restaurante que tem na praia) têm medo de ali ir à noite”. E também porque tenciona ter ali mais um restaurante, mas com contrapartidas: “Quero a garantia de não ter de ir a concurso público pela concessão”. É que diz só ter “mais €300 mil para investir ou oferecer à Câmara” e que não os terá “se tiver de ir a concurso público”. Porém, o espaço que ambiciona — a Kubata — pertence a uma sociedade ligada a outra família com propriedades na vila (os Francos) e “está apreendido num processo de insolvência”, explica António Espírito Santo. O advogado da família Franco lembra que “a Kubata não pode ser transacionada pela Câmara nem adquirida pela Vila Vita enquanto o processo não estiver resolvido”.
O presidente da Câmara de Silves, Rogério Pinto, informa por seu lado estarem “a analisar juridicamente a melhor solução para defender o interesse público e depois tratar do protocolo de doação da escritura”. Mas recusa falar em contrapartidas ou discutir se os €300 mil prometidos por Manuel Cabral dão conta do recado, já que a obra de requalificação prevista triplica esse valor e, admite, “a Câmara não tem verbas”.

A propriedade “pastilha elástica”


“Este terreno já encolheu e esticou várias vezes, como uma pastilha elástica”, ironiza Fernando Serpa, vereador socialista (oposição) da Câmara de Silves, que “exige a devolução imediata da praia ao domínio público”. É que a propriedade, que na década de 90 não constava do cadastro de propriedade, começou por ser registada com 30.420m2, passou por outras variações e acabou por ser redelimitada em 2010 e agora vendida ao grupo Vila Vita como tendo 37-979m2. Isabel de Pina, a advogada da família Santana Leite que tratou de todo o processo, escusou-se a esclarecer o Expresso sobre o assunto, argumentando que este já estava encerrado.
Mas em Silves e em Armação de Pêra a oposição quer ver o assunto esclarecido, já que este aumento de área engloba parcelas de um outro empreendimento que tinha sido cedido ao domínio municipal. Rogério Pinto limita-se a dizer que “o aumento tem que ver com o levantamento topográfico que os anteriores proprietários tiveram de fazer e que foi aceite pela Câmara” e pelo novo dono.

TRÊS PERGUNTAS A

Pedro Afonso Paulo
Ex-secretário de Estado do Ambiente e do Ordenamento

- Porque é que o Governo não exerceu o direito de preferência nem expropriou a praia de Armação de Pêra?
- Porque não temos dinheiro nem para o essencial. Não tínhamos dotação orçamental. Houve um corte de 80% no investimento entre 2011 e 2012 e de mais 5% em 2013, que recaiu sobretudo na área do Ambiente e do Ordenamento, que ficou sem €19 dos cerca de €24 milhões cortados. Além de que não tinha hipótese de obter visto das Finanças, muito menos em tempo útil.
- Este caso faz jurisprudência?
- Não posso assumir isso. O que sei é que se a prioridade são as obras de defesa e proteção costeira, não podemos estar preocupados com as de embelezamento e requalificação de praias. E nestes casos está sempre assegurado o acesso e fruição públicos.
- Então fica o privado encarregado de requalificar a praia?
- O Estado nunca teria hipótese de requalificar a praia antes de 2015. O privado quer uma envolvência mais segura e disse que pretendia arranjar o parque de estacionamento e ajudar o clube de futebol. Mas o que ali se fizer tem de cumprir as regras do Plano de Ordenamento da Orla Costeira.

Alveirinho Dias
Geólogo e especialista em dinâmica costeira e professor na Universidade do Algarve

- Portugal foi pioneiro na definição do domínio público marítimo (DPM). Esta delimitação continua a fazer sentido?
- Todo o sentido. O domínio público é um instrumento de gestão excecional que Portugal e depois o Brasil instituíram no século XIX e que muitos outros países, como a vizinha Espanha, lamentam não ter. Tem sido uma salvaguarda, mas podíamos usá-lo melhor. No pós-25 de abril houve muitas áreas desafetadas, como na Praia de Faro, que ficou sob gestão camarária, ou Fonte da Telha (junto à Costa da Caparica). Seguiram-se a ocupação legal e a clandestina – e um aumento das zonas de risco, já que quanto mais pessoas e bens há nestas áreas maior é o risco face aos avanços do mar.
- Cerca de 30% da costa são propriedade privada, segundo dados da Agência Portuguesa do Ambiente. Sabia disso?
- Acho muito. É muito esquisito, sobretudo porque é preciso demonstrar que já pertencia a alguém antes de 1864. E na altura o litoral não tinha valor. Mas quem tiver propriedades no litoral com estatuto privado está sujeito às mesmas regras do domínio público marítimo: não pode construir o que quer, tem de respeitar as regras do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) e toda a legislação aplicada ao litoral. Não conheço em Portugal nenhuma praia vedada.
- O que pensa da ‘privatização’ da praia de Armação de Pêra?
- Há muito que se sabia que a propriedade era privada, mas o público vai para lá há décadas e isso pode ser visto como usucapião.

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