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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Pedra do Ouro e os inexplicáveis licenciamentos camarários

O artigo da conceituada investigadora Luísa Schmidt do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e autora de diversos trabalhos de enorme e reconhecida qualidade no âmbito das temáticas ambientais.
O artigo foi públicado na edição do Expresso, do passado sábado dia 22 de fevereiro de 2014.

Rolling Stones

Nem de propósito, no mês passado falávamos no estado lamentável do litoral, e de como isso se deveu às pressões e direitos abusivos que os sucessivos governos nacionais e locais foram autorizando à beira-mar sobreocupando áreas de risco, como, aliás, vimos denunciando há décadas neste espaço. 
Pois eis que pimba! Os casos não param de surgir. É o que está a acontecer - mais uma vez - no litoral do município de Alcobaça. Os factos remontam a 2004 quando, na linha do que já acontecera noutras praias, foi emitida uma licença para construção de uma urbanização de moradias em banda nas arribas da Praia da Pedra do Ouro. As irregularidades eram inúmeras: violação do POOC Alcobaça-Mafra (aprovado em 2001) com implantação das construções licenciadas invadindo "áreas de proteção integral"; desconformidade entre a descrição predial de terrenos e a realidade destes ... Para não falar do óbvio risco de erosão e da fragilidade das arribas já em desmoronamento as quais, segundo parecer técnico da então ARH-Tejo, constituem local inadequado para a edificação, propondo a CCDR a sua classificação como faixa de proteção do litoral. 
Um grupo de moradores locais conseguiu (em 2005) suspender e impugnar o licenciamento e, de processo em processo, de recurso em recurso, o novelo não parou mais de se desenrolar. Já deu para tudo: desde um ímbroglio de pareceres contraditórios das entidades administrativas centrais e locais; a incompetências institucionais; passando por pressões e marginalização de técnicos da administração e culminando em intimidação por cartas anónimas cobardes e vergonhosas. 
Recentemente um parecer exemplar da inspeção do ambiente (IGAMAOT, 2013) pôs o dedo na ferida dando razão aos moradores, um grupo também ele exemplar pela sua persistência e coragem, constituído entretanto como associação cívica. Mas, atenção, o licenciamento fora dado pela autarquia e, imagine-se, o assunto ressurgiu agora. Os donos do terreno, entre os quais uma empresa offshore com sede nas ilhas Caimão, insiste em construir na arriba em desagregação ... Mas será que querem mesmo construir ou só estão interessados na indemnização à qual se habilitaram através do licenciamento camarário, e apesar da IGAMAOT demonstrar que não podem? A decisão está neste momento nas mãos do tribunal. 
Este caso da Pedra do Ouro teve a sorte de ser também um caso de cidadania invulgar: foi evitado até hoje à custa do esforço e empenho de cidadãos com capacidade para levar as coisas até ao fim. Se olharmos o nosso litoral nos últimos dias, vemos por toda a parte pedras rolantes, fora as que não vemos porque ainda não saltaram. Os chamados licenciamentos ilícitos por esta costa fora mereciam ser identificados e discutidos; os processos inaceitáveis de prédios construídos na praia de Norte a Sul, ou os PIN aprovados para os areais e arribas; mais o hotel que pretendem construir nas praias de Vila do Conde e nas falésias de Albufeira ... Tudo deveria ser divulgado e levado a debate público franco. 
Acima de tudo urge parar as novas urbanizações ou hotéis em lugares de risco, criando mais factos consumados e 'direitos adquiridos', pois, mesmo que ninguém os construa por estarem absurdamente em risco, vão obrigar a indemnizações chorudas. Urge parar também as obras pesadas para segurar as casas de alguns que não só pagamos como pagaremos cada vez mais: a cada autorização de risco corresponde um colosso de novos custos associados: esporões, indemnização, erosão sobre outros proprietários que ficarão em risco e irão requerer indemnizações e mais esporões, e por aí fora. É injusto o erário público continuar a despender milhões para tentar suster inutilmente a decomposição do litoral em benefício daqueles que mais contribuíram para o degradar; é preciso repensar as obras segundo uma escala de prioridades. 
Isto assim é um roubo, que por agora está escondido atrás do socorro aos desastres. Mas são PPP em série à nossa espera e muito em breve a abrirem-se debaixo dos nossos pés. 
A crise do litoral português tem boa ciência e bons técnicos apesar de 'convenientemente' arredados. O problema é, claro, político, ou seja, de moral e de carácter. 

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